uma história minha

maio 24, 2019

T.E. EU (trabalho, espelho, eu). Considero como trabalho artístico, o resultado de informações absorvidas do universo individual e/ou social, processadas no interior de um ser humano e transformadas em objetos através de uma ou mais linguagens escolhidas. Assim o trabalho do artista reflete a sua existência no seu tempo e espaço: Eu, aqui, agora. Aqui apresento a minha experiência vivida desde 2002 em projetos que demonstram a minha realidade e de muitas mulheres com as quais convivi ou convivo. Foi um momento em que me vi cercada por mulheres especiais. São trabalhos inspirados em mulheres como Aura, então com 94 anos, irmã do meu avô, foi uma das primeiras mulheres funcionárias do estado do RGS, desquitada, em 1936; Darci, então com 99 anos, mãe de uma aluna minha, e assunto de muitas das nossas conversas nos momentos de leitura/avaliação de suas pinturas. Firmina, minha avó, e em todas as outras que vieram à frente de seu tempo e derrubaram barreiras para que hoje sejamos mais livres. Trabalhos dedicados a Luísa, Marias Eduardas, Paula, Beatriz, Lívia e outras menininhas que estão chegando e viverão já num mundo mais cheio de conquistas e opções.  Desenvolvo trabalhos de técnica mista (pintura, desenho, colagem, papietagem e têxtil) que trazem como assunto principal as questões relativas à situação das mulheres no universo contemporâneo, enfocando desde a cobrança de um estereotipo de beleza física, coisa que me diz respeito pessoalmente. Como mulher com deficiência física, encaro esta questão diariamente.   A partir de alguns trabalhos já executados, percebi claramente que este assunto não interessa só ao público deficiente físico (com seu distanciamento tão grande do padrão estabelecido pela mídia e pelo mercado de consumo), mas também à sociedade como um todo, pois a busca de uma imagem perfeita se tornou uma obsessão que acabou por desfigurar toda a nossa escala de valores. A destruição destas imagens nos trabalhos provoca a discussão, abre possibilidade de reavaliação, e talvez até, mudança de postura do espectador.   Brincando de bonecas depois dos 40 São trabalhos criados e desenvolvidos usando como material a boneca-símbolo do estereótipo de beleza exigido pelo padrão estético pré-estabelecido. São pinturas-colagens de acrílica sobre tela. Tinta com colagens de papel de seda, tecidos e rendas, todos com uma historia afetiva. Sem a preocupação pelo acabamento impecável, pela questão do refinamento técnico, antes pelo contrario, o que me interessa é a expressão pura, direta, é passar ao outro minha própria experiência do mundo através do trabalho, com a destruição e a reconstrução da boneca, contar um pouco da história de todas as mulheres que buscam esta imagem praticamente inatingível. Como mulher deficiente física e artista, uso o meu fazer como forma de discutir e buscar uma nova possibilidade de ser atuante no mundo contemporâneo.  ‘O Baile das mulheres-casca’ Foi a etapa seguinte, onde trato da multiplicidade de personagens vividas pelas mulheres através da execução de tarefas diversas num mesmo momento: coisas domésticas, profissionais, maternidade, etc.  São ‘móbiles – mulheres’ moldados em papietagem e tecido sobre manequins de tamanho natural, normalmente usados para modelar costuras ou expor roupas em vitrines. Foi um trabalho iniciado e executado a partir de um premio recebido da FUNARTE destinado a artistas com deficiência em 2006. Desde então já foi mostrado em várias cidades como Brasília, Rio de Janeiro, Recife e Porto Alegre. Estas viagens das ‘meninas’ me levaram a querer usar o papel manteiga usado na embalagem dos trabalhos, e que traz consigo todas as marcas destas aventuras. Decidi usá-lo como suporte de uma nova série, que significa uma troca de pele em consequência de outra etapa do crescimento destas mulheres.    Pele que se solta Dor – feminino – religioso – barroco A imagem da cobra nadando no rio e esfregando o corpo varias vezes na pedra da margem para que a pele se solte. Afinal o corpo cresceu e aquela roupa não serve mais - edicse – dói.  De repente, papéis brancos, finos, leves, sensíveis, amassados recebem um ‘reforço químico’ de verniz acrílico para que suportem os passos que vem a seguir. Coisas de mulher. Trazem um pouco da bagagem de muitas.  São imagens há tempos guardadas, pedaços de vestidos que um dia foram importantes para a amiga, rendas, tules, lantejoulas e rosas de pano vermelhas, todos elementos que simbolizam a nossa necessidade feminina de, de vez em quando, ‘trocar de pele’, fazer vir à tona a que está por baixo, mais perto do dentro.  O papel enruga, rasga, amassa, reage, não aceita. Recebe mais papel, mais pano, mais imagem, mais tinta, mais vida, mais brilho, dourados, vermelhos, enfim, se solta, como a pele da cobra. E olho. Arrepio. Está quase barroco, religioso.  A existência é cheia de pedras pelo caminho. Servirão de asperezas a serem esfregadas para que a pele se solte e nos deixe crescer.

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